sábado, 22 de dezembro de 2007

Os loucos e as crianças sempre dizem a verdade

Ele era sério , introspectivo e casmurro . Sua estatura mediana , seu semblante amarrado e a voz grave , faziam-no parecer uma criatura recém saída de uma novela de Balzac , um daqueles solteirões , sem voz ativa e dominado pela irmã mais velha , uma maquiavélica senhorita virgem no auge dos seus cinqüenta anos .
Seu Frederico era visto assim : um senhor estranho , que cumprimentava com a cabeça e com monossílabos . Nada o fazia sorrir , ao menos seus vizinhos nunca tinham visto tal proeza ao longo dos anos que o conheciam , ou melhor dizendo , ao longo dos anos em que viam sua figura na rua , pois este era o máximo de convivência que ele travava com as pessoas .
As crianças viam nele um prato cheio para as suas pilhérias : inventavam-lhe apelidos , jogavam-lhe pedrinhas , assoviavam enlouquecidas . Mas nem isso o tirava do quase estado de torpor com que se entregava em suas longas , lentas e silenciosas caminhadas pela rua . Os mais prestativos e curiosos muitas vezes tentaram se aproximar do velho , mas desistiam logo:‘ Seu Frederico era meio fraco das idéias ’.
Como se alguém pudesse ler o que se esconde atrás de um olhar ! Como se pelos hábitos de alguém , pudéssemos enxergar sua alma e suas atitudes superficiais pudessem mostrar sua índole ! Tolice achar que podemos julgar , bobagem tentar entender : a vida não tem explicação . Assim , Seu Frederico pensava . Pensava , pois as palavras foram-lhe morrendo desde a morte da esposa , e as poucas que conseguiam sair , somente as paredes do velho sobrado ouviam .
Aos 78 anos , Seu Frederico achava que já vivera muito . A mulher , Lia , que com ele viera da Alemanha , morrera há mais de dez anos . Filhos , nunca tiveram , não por falta de vontade , pois o que o jovem casal mais sonhava era encher a casa de crianças . Mas o bom Deus não quis assim , e com o tempo a idéia e a felicidade que um encontrava no outro fizeram-lhes esquecer o antigo sonho . Lia ... quanta saudades sentia da única mulher que amou neste mundo ! Lembrava com o mais terno carinho de cada um dos Natais que passaram juntos : comiam maças assadas como se lá fora estivesse caindo neve , trocavam presentes como se fossem duas crianças . Como foram felizes ! Este seria o décimo primeiro natal que passaria sozinho , e no entanto o bom Deus não se apiedara do seu sofrimento , deixando-o sofrer mais em um lugar de onde já deveria ter ido embora há muito . Se Deus não lhe ouvira durante todos estes anos , haveria de ouvir na véspera do Natal ? Não , claro que não . No Natal Deus está por demais ocupado .
Então , o que lhe restava fazer ? Esperar . Esperar pelo fim do seu martírio , esperar pelo descanso eterno , esperar por Lia . Enquanto isso , enfeitaria a casa , faria uma ceia para dois , abriria os presentes que sempre comprava para depois irem direto para o armário... mas os compraria .
Entregou-se a tal tarefa e pode-se dizer que por um momento achou achou-se contente . Será que minha Lia está me vendo ? Pensava antes de colocar cada guirlanda ou antes de pendurar um risonho Papai Noel .
No momento em que colocava o último enfeite - uma guirlanda lindíssima que Lia tanto gostava - a campainha da porta tocou . Emburrado ,porque alguém interferira suas atividades foi abrir a porta para um menino sorridente .
- Bom Dia ! O senhor poderia me dar algo de comer ? Sabe como é ...
- Só um momento ! – interrompeu bruscamente , antes de girar e ir em direção da cozinha .
No momento em que Seu Frederico deu as costas , o menino adentrou na sala . Na verdade nunca tinha feito aquilo - entrar sem pedir licença - mas esta casa era tão bonita ! As crianças que aqui moram deveriam ser muito felizes , pensava curioso .
- Está aq ... - Quem mandou você entrar ?
- Elas devem ser muito felizes ...
- Elas quem menino :?
- As crianças , seus filhos ou será que são seus netos ? Nossa ! Nunca vi casa mais bonita ! Lá na minha não tem nada disso , minha mãe é pobre e meu pai morreu , por isso o Papai Noel não vai lá . Mas aqui com certeza ele deixa um monte de presentes , não é ?
- Ahm ... ?
- O Papai Noel vem aqui ?
- Não .
- Não ? Como ? E seus filhos ?
- Não tenho filhos . E olha ...
- Não tem filhos , netos então ? - seguiu metralhando o pequeno .
- Não também – respondeu meio perplexo por estar dando atenção àquele garoto .
- O senhor mora sozinho ?Não tem mulher ?
- Sou viúvo .
- E como o senhor festeja ? - Festeja o que ?
- O Natal , o que mais poderia ser ?
- Eu não festejo .
- Por que ? Se tem uma casa , tem enfeites e tem comida ?
- Por que o Natal faz com que eu lembre de pessoas que já morreram e isso me deixa triste ...
- Só por isso ?
- Como assim moleque ? O que você sabe da vida ? Eu sou triste e conto com ansiedade o dia em que morrerei !
- Não diga que todas as pessoas que o senhor conheceu morreram ?
- Morreram as que eu amei , - a que eu amei , pensou para si mesmo .
- E não dá pra tentar de novo ?- Tentar o que menino ?
- Tentar amar , ora essa ! Assim , o senhor amaria quem estivesse vivo e não ficaria mais só , e desejaria viver !
- Não há mais tempo ...
- Claro que há ! E outra , as pessoas que o senhor amava gostariam de estar vivas ?
- Mas é claro !
- Então porque ?
- Por que o quê ?
- Porque o senhor quer morrer ? Não é melhor viver , viver por quem morreu e não pode aproveitar as coisas boas da vida como comer doces e ganhar presentes ? Um suave silêncio foi a resposta desta pergunta : não se sabia quem era o velho quem era o menino . Por motivos que nem mesmo Seu Frederico sabia , convidou o menino e a mãe para logo mais a noite virem até sua casa comer a ceia de Natal . Um sorriso radiante de parte do menino valeu mais do que um sim , e o velho senhor já os esperava .
Com uma alegria que há muito não sentia , sorriu : os loucos e as crianças sempre dizem a verdade , sempre .

Gabriela Ferrony, dezembro de 2003

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